Você alguma vez se reencontrou com um conhecido depois de algum tempo e o notou diferente, quase irreconhecível, e se perguntou: “fulano está diferente ou são meus olhos?
Saiba você que tanto ele quanto seus olhos já não são os mesmos. Desde o dia em que o fulano se foi, muitas coisas mudaram: o fulano, os seus olhos, e com os seus olhos também o seu ponto de vista sobre as coisas e ele, o fulano, claro, que agora já quase não encaixa no ângulo onde antes cabia perfeitamente. Talvez seja essa uma razão razoável para você pensar na possibilidade de mudar o ângulo, a perspectiva, a sua concepção das coisas e das pessoas, que com o passar do tempo mudam mais rápido que as coisas.
O movimento parece ser uma das características mais marcantes da contemporaneidade. A impressão que temos é de que as coisas não param, assim como a vida parece não parar. A sucessão de acontecimentos é tal hoje em dia que a cada momento você é compelido a mudar de estratégias, de critérios e, inclusive, de objetivos, porque o objetivo ao qual era possível chegar ontem utilizando determinado método, hoje nos desafia, desafia as nossas técnicas do dia anterior. O que ontem estava ao alcance de nossas mãos, hoje vemos ironicamente vazar por entre nossos dedos. Nós também mudamos. Ontem éramos uma “coisa”, hoje somos outros. E entre “coisas” e “outros” há um abismo. Amanhã seremos sabe-se lá o quê, se melhor ou pior. Pouca relevância tem a expectativa sobre o que viremos a ser amanhã; melhorar ou piorar não vem ao caso; o que excita e dá a impressão de que estamos vivos na contemporaneidade é a própria mudança e não o que a acompanha.
A cada dia as coisas estão distintas, mas, não por isso, descaracterizadas. Elas continuam em seu permanente processo de desenfreada transformação e nós continuamos não percebendo a transição, justamente porque os nossos olhos a cada instante se readaptam às suas mutações. A partir daí pode-se afirmar que coisas e olhos não param nunca; as coisas sempre fazendo novas poses e aparecendo diferentes na foto; e os olhos sempre correndo atrás de enquadrá-las de novos ângulos, novas perspectivas; e tem que ser assim, porque, de ser de outra maneira as coisas se estatizariam.
Que ontem nada era como é hoje, isso já sabemos. Mas o mais importante de tudo isso é que, tal como se nos aparecem, nem ontem nem hoje coisas e pessoas eram ou são; dá a impressão de que ontem tudo estava e nada era. O presente das coisas e pessoas parece não ser outra coisa que um fugaz instante que é e logo deixa de ser, que está e logo desaparece; tudo acontece tão rapidamente que o passado parece sempre suceder ao presente, deixando-nos sem respostas, sem ação, mas também sem medo, porque assim como está não continuará; essa é uma de nossas poucas certezas, talvez a mais consoladora.
Nesse movimento eterno de mudança de estado nada parece permanecer. Só o dito parece permanecer como foi dito; mas sempre há possibilidade de ser redito e até contradito. E a verdade viaja no trem dessa perene oscilação entre dizer e retificar, pulando de dente em dente. A cada abrir de boca sai uma verdade diferente. Mas a verdade não é uma só? Claro que não. Isso já foi explicado há mais de sete mil anos. A verdade depende do ponto de vista, e se a vista muda, nada mais justo que considerar a mudança do ponto de onde a verdade é vista; ou seja, é preciso mudar a perspectiva do olhar, porque o olho já mudou e você nem percebeu.
Até Deus mudou de ponto de vista várias vezes. Antes ele estava vigilante, acordado 24 horas à espreita de um desavisado que devesse ser castigado pelo seu erro; hoje ele está as mesmas 24 horas em vigília, mas é para perdoar a quem erra, porque, finalmente, parece entender que o humano é diferente dele. Condenar e perdoar são duas coisas em extremos opostos. Olha só quanta mudança de perspectiva! Mas Deus é Deus e para ele tudo parece ser mais fácil. Em todo caso, não se confiem muito, já que as mudanças que ele sofreu nunca foram anunciadas por ele pessoalmente. Do que nos chega sobre ele podemos concluir que ele também é adaptável.
E aí, já se convenceu de que tanto o fulano quanto seus olhos não eram os mesmos? A vida, amigo, é um eterno aproximar-se e distanciar-se. Aproxima-se de umas coisas distanciando-se de outras, e assim o movimento se mantém intacto, paradoxalmente. A nostalgia de umas coisas é substituída pelo gozo de outras. Coisas e pessoas desaparecem, e das cinzas das idas surgem as vindas. O espaço de quem está indo vai sendo ocupado pela silhueta inquieta e insinuante de quem vem vindo. O gerúndio é o tempo que prevalece; e como não haveria de prevalecer se ele é o tempo da transição? Desse modo, nostalgia e esperança são sentimentos de mesma intensidade, ambos inseparáveis do ser humano, que dadas as circunstâncias, poderia ser chamado de “estar humano”.
Nesse mundo em que coisas e pessoas vêm e vão (e parece que às vezes vêm só pelo prazer de um dia ter que ir) temos obrigatoriamente que ir readaptando-nos às novas circunstâncias; temos que mudar constantemente os moldes das coisas, abrir-nos às possibilidades, porque vivemos em um mundo de coisas possíveis. Por isso, a mudança de ângulo, de perspectiva e de conceitos parece estar estreitamente vinculada à sobrevivência. O que não muda enferruja; o que enferruja perde movimento; e como a relação entre vida e movimento é de necessidade, veja você o que acontece com quem se mantêm inflexível em seus pensamentos, em suas opiniões, em seus pontos de vista, aferrado a algo que já não é, mas que parece-lhe ainda ser, porque não se permitiu ver a transição do ser para o não ser. Veja você!
Mudança é a palavra de ordem na contemporaneidade. Tudo deixa de ser o que era antes. A política, por exemplo, antes era o instrumento através do qual caminhava-se para a felicidade; hoje é, para muitos, uma profissão. Deus antes era carrasco, hoje é amor para uns e inexistente para outros; a ética era um conjunto de regras que orientavam a conduta humana, hoje cada um tem sua própria ética e a utiliza para subjugar os demais à sua conveniência.
Abramo-nos às possibilidades, possibilidades de vida e de morte, mas nunca de estaticidade, que não deixa de ser uma forma de morte. Não defendamos verdades absolutas porque parece que não existem. Não esqueçam que o que parece de uma forma para mim pode parecer diferente para vocês; por isso vejo oportuno que se sirvam de certa moderação ao ler isto.
Para o futuro são esperados mais terremotos, mais inundações, mais eleições de presidentes mulheres, mais casamentos entre pessoas do mesmo sexo, mais universidades, mais janelas gradeadas, mais carros nas ruas com suas sirenes inquietas e denunciantes, mais pestes, mais tecnologias e muito mais verdades; mais resistência, mais ponto de vista, mais solidariedades, mais seres humanos e mais modos de serem humanos. Finalmente, desgraçadamente, espera-se mais corrupção. Mas há esperança de que um dia possamos dar à corrupção o mesmo destino que foi dado ao trema recentemente.
Valdson Amorim