Dizem que em uma sociedade democrática o poder emana do povo; que os titulares do poder são os cidadãos. Dizem também que o exercício do sufrágio -considerado o fato mais relevante em uma democracia- é a maior expressão de cidadania, de liberdade e de poder de decisão. Dizem, finalmente, que o voto é um direito cidadão. Mera ilusão; retórica refinada.
Essas afirmações sugerem algo sobre o qual não temos muitas dúvidas: o valor do voto. Mas convêm ser cauteloso ao fazer comentários acerca do assunto. O voto é respeitável, convenhamos. A mesa eleitoral é um verdadeiro templo, ou, melhor dito, um altar, onde cada cidadão exerce, um por vez, o papel de sacerdote, revestido do poder que tem. O auge do exercício desse poder é fugaz, imperceptível, fictício. O momento do voto é comparável à assinatura da passagem do admirável ao ridículo. Em alguns casos essa assinatura pálida, desfigurada, quase apagada pela desconfiança do protagonista da ação fugaz, é o selo de sua própria crucificação.
Dia de eleição é um dia de festa; é um dia em que os sentimentos se misturam e nos confundimos diante de nós mesmos. O momento do voto parece ser, a propósito, um momento de confusão, de conflito interno. Diante do mesário você assina a sua sentencia; lá você derrama a sua cidadania com consciência. E não há como não fazê-lo, porque, ou você exerce esse “direito” ou perde os outros. O momento do voto é um momento decisivo. Ali, a primeira decisão irremediável é a de votar; depois decide quem decidirá por você nos próximos anos. Quando digo que você “decide votar” estou, de certo modo, indo contra os fatos, porque diante da possibilidade de usufruir de seus direitos fundamentais, o voto aparece como um “dever” sin equa non. Sendo assim, você pensou que decidiu votar, mas a verdade se esconde detrás do seu ingênuo imaginário.
Ilude-se quem pensa que o voto é um direito que dá direitos. O voto é, na verdade, uma obrigação da qual não podemos esquivar; caso contrário, assim como presenciamos o derrame da cidadania no momento do voto, veremos o derrame dos direitos como conseqüência do “não-voto”.
Geralmente as pessoas elegem um sujeito porque simpatizaram com ele, porque gostaram de suas habilidades retóricas ou por outras razões que não devemos mencionar neste escrito (não falaremos aqui de negócios). Uma vez que o beneficiário de seu voto é eleito, desaparece. Mas, como o voto tem seu atrativo circunstancial, pode ser que você se reencontre com o dito cujo, você com outro voto na mão prestes a escapulir, e ele uma vez mais como potencial beneficiário de seu descuido irrefletido.
Todo voto tem seu valor, mas só depois de despejado na urna. Enquanto está em poder do eleitor o voto não vale nada. Quando muito, o eleitor se beneficia de algumas ofertas simbólicas em troca do bem mais precioso. Uma vez feita a venda, começa o processo de amadurecimento do próximo produto. Utilizo aqui o termo “venda” porque a compra de votos é crime. Agora imagine você se determinam que vender o voto também constitui um delito! Não, nem o imagine! Seria um ato cruel, quase sádico, de despojo total.
Para o eleitor o voto tem um significado relativo. O que é um eleitor com um voto em seu poder? Um mero eleitor. O voto significa muito mesmo é para o político beneficiário. A prova disso é o esforço que eles fazem para arrancá-lo de nós (digo “nós” para incluir-me na categoria). E para isso se dispõem a qualquer coisa. Na ansiedade de receber o seu voto o político esquece que pertence à classe dos eleitos; por votos eles pisam lama, andam a pé, cumprimentam você sem arrogância, brigam entre si, choram em público, sacrificam-se e prometem o que nunca cumprirão; por voto eles passam até fome; rompem relações com colegas e até matam.
Um eleitor em véspera de eleição é um despossuído em potencial. A eminência do esvaziamento o deixa confuso, mas encorajado. Aproxima-se o grande momento e ele decide. Mas, antes de decidir, recorre às mais diversas saídas para o problema que se avizinha. Ainda com o voto em sua posse, já escorrendo entre os dedos, decide desfigurá-lo, depositá-lo sem cor, em branco, na tentativa de que não seja visto. Tolo engano. A ingenuidade o trapaceia. A brancura do voto o deixa mais fácil de ser visto pelo inimigo circunstancial. Quanto mais branco o voto, mais longe reflete. No instante em que o cidadão deixa cair o voto na urna já tem uma legenda beneficiando-se de sua branquidão. E esse fato é a mais real expressão da abominável desigualdade na política brasileira.
Uma vez depositado o voto, num descuido fatal, resta recomeçar; engolir o fato trágico e confiar na generosidade do beneficiário. Conclui-se que foi uma tragédia a tentativa de exercer a cidadania. O consolo do eleitor é o fato de que tão logo deixa escapar um voto ele já é possuidor de outro, sem valor ainda, claro, porque o voto tem valor por temporada. Em seu devido momento, o voto atual terá o mesmo valor que teve o anterior. Supõe-se que não o mesmo destino. O único problema é que a espera é longa e às vezes angustiante. Essa espera se torna mais aflitiva justamente porque o beneficiário do voto em branco é desconhecido, e o eleitor não sabe a quem recorrer para reivindicar o ressarcimento pelo ato, que apesar de equivocado foi um ato heróico.
O que fazer com um voto nas mãos, sem expressão? É preferível entregá-lo, mesmo que seja a um receptor desconhecido e descomprometido, a ter que sofrer com o cancelamento do CPF. Afinal de contas, é mais importante a possibilidade de ter o empréstimo aprovado do que ficar com um voto para si, em um gesto de puro egoísmo. O CPF sim, esse dá direitos e facilita a vida do cidadão. O voto é um dever, uma obrigação; é uma arma que deve ser usada com muita cautela, porque ela pode estar apontada para você sem que você perceba.
Nas próximas eleições faça um discernimento sério antes de votar. O que está em jogo são os seus direitos. Esse dever, embrulhado na roupagem de direito, não melhora a sua vida, mesmo que você o cumpra, mas se você não o cumpre pode piorá-la. Veja você.
Valdson Amorim